Num cenário em que a velocidade das mudanças tecnológicas desafia os modelos tradicionais de P&D, o Defense Innovation Unit mostra como construir pontes entre setor público, grandes empresas e empreendedores
É curioso — e até instigante — perceber que algumas das inovações mais presentes no cotidiano da sociedade nasceram em ambientes militares. A internet, o GPS e até tecnologias precursoras da inteligência artificial foram desenvolvidas em contextos de esforços e investimentos acelerados em defesa, nos quais a urgência estratégica, somada a orçamentos robustos, permitiram explorar o desenvolvimento de novas tecnologias com TRL baixo (Technology Readiness Level, ou Nível de Maturidade Tecnológica, em tradução livre), que talvez não recebessem investimentos em outras situações.
Considerando os clusters de inovação em defesa, um dos modelos de referência sob o ponto de vista da governança da inovação é o modelo do Defense Innovation Unit Experimental (DIUx, ou Unidade Experimental de Inovação em Defesa), do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DoD). Criado em 2015, suas origens remontam ao ano de 2001, quando Ashton Carter, então professor em Harvard, escreveu sobre como a aplicação de tecnologias comerciais desempenharia um papel decisivo na defesa do país. Na época, Carter alertou que as Forças Armadas dos EUA deveriam se tornar adeptas à rápida integração de inovações comerciais em suas operações, para não se tornarem obsoletas em um curto espaço de tempo.
Nos anos seguintes, o Vale do Silício avançou rapidamente, impulsionando avanços tecnológicos em diversos setores, enquanto as Forças Armadas continuaram a ficar cada vez mais para trás devido a processos de aquisição obsoletos, obstáculos burocráticos e resistência cultural, entre outros fatores. Quando Carter se tornou Secretário de Defesa dos EUA em 2015, ele aproveitou a oportunidade e criou o DIUx, com o objetivo de tornar o Departamento de Defesa “o mais rápido adaptador e adotante de tecnologia comercial em sistemas de defesa do mundo”.
Desde então, o DIUx evoluiu — perdeu o “X” de experimental em 2018, ganhou status permanente e se consolidou como um vetor estratégico de inovação aberta dentro da estrutura militar americana.
Mas o que isso tem a ver com habitats de inovação e empresas civis de todo o mundo?
Tudo.
Num cenário em que a velocidade das mudanças tecnológicas desafia a capacidade de adaptação dos modelos tradicionais de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), o Defense Innovation Unit mostra como é possível construir pontes eficazes entre mundos que historicamente operaram em silos: o setor público (especialmente a defesa e as forças armadas), as grandes organizações e o ecossistema empreendedor. É um grande exemplo de inovação aberta que pode – e deve – ser adaptado de acordo com o tipo de organização e a localidade.
Para entender a adaptabilidade do modelo, é preciso compreender a sua essência. Neste sentido, é importante destacar que o Defense Innovation Unit opera sob três pilares:
1. Problemas bem definidos: o DoD não pede “inovações genéricas”, lançando desafios bem especificados, a partir de desafios mapeados por meio de um processo contínuo de escuta das unidades operacionais do Departamento de Defesa, que apresentam seus problemas reais (não hipóteses).
2. Processos ágeis: enquanto licitações tradicionais levam anos, o Defense Innovation Unit fecha contratos em menos de 60 dias.
3. Parceria com ecossistemas: startups, universidades, centros de pesquisa e grandes empresas colaboram em soluções que estejam em níveis médios ou altos de maturidade (TRL), sem engessamento hierárquico.
Nota-se, portanto, que o Defense Innovation Unit tem uma abordagem pragmática orientada à entrega. Neste sentido, a legislação também precisou ser adaptada, adotando um processo de seleção e contratação chamado Other Transaction Authority (OTA, ou Autoridade para Transações Diversas). O OTA é uma ferramenta legal que permite que agências governamentais celebrem acordos que não se encaixam nas categorias tradicionais de contratos, convênios ou subsídios. Esses acordos, conhecidos como Other Transactions (OT, ou Outras Transações), são mais flexíveis e podem ser adaptados para atender às necessidades específicas de cada projeto, especialmente em áreas de tecnologia inovadora.
A adoção do OTA pelo Defense Innovation Unit permitiu processos de contratação mais rápidos e menos burocráticos que os tradicionais mecanismos de licitação governamental. Resultado: o tempo entre o mapeamento do problema e a entrega de uma solução testada pode ser de poucos meses. Aqui se percebe uma primeira lição importante: para realizar inovação aberta, organizações públicas e privadas precisam ter uma solução de contorno da burocracia tradicional, agilizando os processos de chamamento, seleção e contratação de parceiros para o desenvolvimento de inovações.
Importante destacar que o Defense Innovation Unit não é um laboratório fechado, nem um um edital para desenvolver projetos. É um programa estratégico de inovação aberta, que permite realizar conexões ágeis entre desafios reais e tecnologias existentes, conectando quem precisa de inovação (no caso, o Departamento de Defesa dos EUA) com quem tem soluções inovadoras e está presente em diferentes ecossistemas, clusters e habitats de inovação.
Em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, nota-se que as empresas e demais organizações estabelecidas não estão devidamente conectadas com os ecossistemas, clusters e habitats de inovação. Ao mesmo tempo, também se percebe que muitos habitats de inovação — como parques tecnológicos, incubadoras, aceleradoras e distritos de inovação — ainda operam como se estivessem dentro de uma ‘redoma invisível’, esperando quase que passivamente que organizações públicas e privadas venham procurar as startups, pesquisas tecnológicas e outros empreendimentos inovadores que lá estão sendo desenvolvidos.
A prática do Defense Innovation Unit mostra que é possível inverter essa equação: habitats podem (e devem) atuar como curadores ativos de desafios complexos propostos por organizações privadas (especialmente empresas) e públicas, que cada vez mais precisam de inovações para sobreviver e prosperar, especialmente no atual cenário globalizado e de mudanças aceleradas. Para que a curadoria exercida pelos habitats de inovação junto aos atores dos ecossistemas locais de inovação se concretize em inovações que levem vantagem competitiva às organizações, não basta promover desafios de forma constante; sobretudo, é necessário ter processos e instrumentos jurídicos ágeis e equilibrados, que permitam realizar parcerias para testar e validar inovações de forma ágil e segura para todos os envolvidos.
Para as organizações públicas brasileiras, os modelos que mais se aproximam do OTA utilizado pelo Defense Innovation Unit talvez sejam a Encomenda Tecnológica (ETec) e o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI). No entanto, as experiências reais têm mostrado que, se por um lado os órgãos públicos do Brasil possuem instrumentos para a contratação de inovações com segurança jurídica, eles ainda estão longe de serem efetivamente ágeis.
Para agilizar o relacionamento com desenvolvedores de inovações com real potencial de atender a desafios propostos por organizações públicas ou privadas, é importante que estabeleçam seus postos avançados de inovação dentro de habitats de inovação focados em soluções para os seus respectivos setores de atuação. Nota-se que os processos de Living Labs e Sandboxes (mas não confundir com Sandbox regulatório, que é algo completamente diferente) podem e devem ser utilizados para organizar os trabalhos nesses postos avançados.
Para que esta integração aconteça e traga os resultados esperados, provavelmente a maior parte dos habitats de inovação brasileiros necessite fazer uma adaptação importante, para que seus serviços sirvam às necessidades de clusters de inovação, com escopo econômico definido e orientado às principais vocações e bases de conhecimento disponíveis em cada território. Desta forma, os habitats terão o foco necessário para quebrar a ‘redoma invisível’ e criar uma zona de convergência com as necessidades e interesses das empresas estabelecidas e passando a ser agentes ativos de transformação territorial, setorial, econômica e social.
O QUE AS EMPRESAS PODEM APRENDER COM O DEFENSE INNOVATION UNIT?
Enquanto iniciativa de inovação aberta, o principal ensinamento que o Defense Innovation Unit traz é que a inovação aberta não é apenas sobre “abrir as portas” para startups. É sobre transformar a cultura e os processos internos para absorver, testar e escalar soluções externas com velocidade e eficácia, a partir de parcerias com diferentes atores e buscando soluções em diferentes estágios de desenvolvimento.
Empresas que adotam este modelo como referência podem construir equipes com mandatos claros de buscar soluções fora dos muros corporativos, empoderadas para contratar, testar e integrar rapidamente essas soluções. Essas unidades precisam ter uma governança leve, processos decisórios ágeis e forte capacidade de articulação com o mercado.
Um ponto crucial — e muitas vezes negligenciado — é o alinhamento com os desafios reais do negócio. O Defense Innovation Unit não sai por aí buscando tecnologias por modismo; ele responde a desafios concretos, identificados, priorizados e especificados por quem é diretamente afetado por eles. Portanto, é necessário criar processos contínuos de escuta ativa desses desafios, com a estruturação de bases de conhecimento úteis, antes de sair buscando soluções.
Outro aprendizado importante é o uso estratégico de instrumentos contratuais e jurídicos. No Brasil, os ambientes corporativos ainda são excessivamente avessos ao risco, o que dificulta a contratação de startups ou a experimentação de tecnologias não consolidadas. É importante lembrar que, de acordo com o ‘Teatro da Inovação’ identificado por Steve Blank, quanto maior o nível de formalidade dos processos de uma organização – pública ou privada -, maiores serão os ‘anticorpos’ contra a inovação. A alta gestão precisa reconhecer isso, criar os mecanismos jurídicos e processuais necessários para proteger as iniciativas inovadoras, com destaque para processos de contratação e o estabelecimento de postos avançados em habitats de inovação com maior potencial de convergência e retorno dos investimentos.
ADAPTANDO O ESPÍRITO DO DEFENSE INNOVATION UNIT À REALIDADE BRASILEIRA
É claro que há diferenças culturais, institucionais e orçamentárias entre o Departamento de Defesa dos EUA e um ecossistema de inovação em Santa Catarina, São Paulo ou no Nordeste. Mas o que está em discussão aqui são as boas práticas implantadas pelo Defense Innovation Unit — e não a sua literalidade.
Portanto, é importante considerar questões como:
CONCLUSÃO: UM CONVITE À OUSADIA
O Defense Innovation Unit não é um modelo perfeito, nem pretende ser replicado integralmente. Mas ele representa uma ousadia institucional rara — a ousadia de mudar estruturas pesadas por dentro, usando a leveza e a velocidade da jornada do empreendedorismo inovador.
Se habitats de inovação, empresas e outros tipos de organizações públicas e privadas quiserem realmente sair do discurso para a prática da inovação aberta, talvez o caminho seja olhar menos para os modismos do Vale do Silício e mais para as experiências híbridas que nascem de setores tradicionalmente conservadores, mas que decidiram se reinventar.
Em última análise, inovar é uma decisão política. E, como mostra o Defense Innovation Unit, até mesmo o setor mais hierárquico e estratégico do mundo — o setor de defesa — pode fazer essa escolha para escapar das armadilhas do ‘Teatro da Inovação’.
A pergunta que fica é: o que falta para nossos ecossistemas de inovação, habitats e empresas fazerem o mesmo?
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